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O PASSADO QUE AINDA SE CALA

Estima-se que, só na península ibérica, durante a Idade Moderna (séculos XV-XVIII), cerca de dois milhões de pessoas tenham sido escravizadas. Em regiões como a Andaluzia chegaram a representar 10% da população, tal como em cidades como Lisboa, enquanto que noutras, como o Porto, o número esteve à volta dos 6% e em Madrid, entre 2% e 3%. A sua origem era principalmente subsaariana, berbere, norte-africana, afro-americana, mourisca, canária ou indostânica e chegavam à península através do tráfico esclavagista espanhol e português, embora tenham sofrido processos de aculturação que incluíram muitas vezes a sua conversão ao cristianismo.


A nível jurídico, em Espanha, as pessoas escravizadas eram consideradas propriedade dos seus esclavagistas, que tinham direito legal a decidir sobre elas a todos os níveis, incluindo, nalguns casos, o de lhes tirar a própria vida. Muitas eram meninas e mulheres, o que levou alguns historiadores a propor que o sistema esclavagista as tenha afectado especialmente. Além disso, eram vendidas por mais dinheiro do que os homens, em muitos casos. Apesar disto ter sido relacionado com a sua capacidade reprodutora, a realidade é que a gravidez representava um perigo para a sua vida e as possibilidades das crianças morrerem eram altas, além de, durante os primeiros anos de vida, serem improdutivas. Por isso, nos últimos anos, tem-se sugerido que o preço elevado das mulheres escravizadas podia corresponder, na verdade, ao seu maior rendimento e capacidade de trabalho.


Tanto mulheres como homens na mesma situação foram forçados a realizar diversas actividades, quer ao serviço dos seus esclavagistas quer para outras pessoas com quem eram empregues, em troca de um aluguer ou de um salário que os esclavagistas cobravam. Embora o trabalho doméstico — limpar, cozinhar e até amamentar as crianças dos seus exploradores — tenha sido uma das suas principais ocupações, também foram envolvidos noutros âmbitos: fiação, construção, venda ambulante ou em lojas, assistência em padarias ou tabernas, vindima, trabalho em campos e hortas ou até ofícios artísticos como a pintura. O caso mais conhecido é o de Juan de Pareja, escravizado pelo pintor Diego Velázquez e autor de obras como A Vocação de São Mateus, exposta no Museu do Prado, mas há muitos outros, como Juan de la Cruz, escravizado pelo pintor Vicente Carducho, que também se dedicou a esse ofício. Não são excepções, mas parte habitual do funcionamento dos sistemas de produção da época.


Deste modo, as pessoas que foram escravizadas na península ibérica desde os inícios do sistema esclavagista espanhol e português participaram, forçadamente dada a sua condição, no desenvolvimento quotidiano de ambas as sociedades, desempenhando actividades diversas em função do grupo doméstico dos seus esclavagistas e contribuindo para a sua construção social, cultural e artística. Rejeitar actualmente quem chega de outros lugares, colocando sobre essas pessoas a responsabilidade pelas misérias do capitalismo, não só significa ignorar a história, como também reproduz as lógicas racistas e desumanizadoras que sustentaram a escravatura. É, afinal de contas, a lógica do colonialismo.

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Alba Gómez