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ARTE COMBATE

Se a única coisa que fizéssemos na vida fosse comer, dormir e trabalhar, as consequências para a nossa saúde mental seriam impressionantes. A forma como as nossas sociedades estão organizadas já levam essa ideia demasiado longe e é por isso que tanta gente vive com depressão clínica. Mas, ainda assim, há sempre um bocadinho de tempo para ver uma série, para ver vídeos de entretenimento ou para decorar algum espaço da casa com alguma coisa um pouco mais bonita, por mais barata que seja, não é? É como se a vida, sem essas pequenas coisas, se tornasse ainda mais miserável.


O facto desses momentos, também eles, estarem controlados pela cultura do trabalho e por empresas gigantes não é coincidência. Forma e conteúdo nunca vão por separado. Quando os únicos espaços de debate são as redes sociais, com formatos e aparências pré-estabelecidas, quando as únicas séries que vemos são de plataformas que só pensam em dinheiro, quando os móveis de todas as casas são da mesma empresa… vivemos num mundo mais miserável. Estes dispositivos (as séries, as redes sociais, a mobília) não servem só para adornar ou decorar o nosso dia-a-dia. Influenciam-no de forma violenta.


A arte é um reflexo de cada momento histórico. Quando o continente americano foi colonizado, de forma extremamente violenta, existiu um contacto muito mais regular entre as pessoas europeias, africanas e americanas. E pode parecer mentira mas já nessa altura havia gente que criticava a violência do colonialismo europeu. Isso foi incluído na arte. No antigo retábulo da capela-mor da catedral de Viseu, podemos ver uma representação de três reis magos em que um deles é um ameríndio, um índio brasileiro. Inclui-se essa figura de forma amigável, por mais surpreendente que seja. pensa-se ter sido pintado por volta de 1505. Mas, sinais dos tempos, por volta de 1510-1520, aparecia já outra pintura, de um mestre desconhecido, representando o inferno. Nela, os demónios são representados como ameríndios, como índios brasileiros. E a representação não é nada amigável. Assim como podemos sempre desconfiar das palavras, podemos também desconfiar das imagens. Esta representação do inferno serviu para desumanizar e promover a violência contra outro grupo de pessoas.


Também há exemplos do presente. Os muros da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na avenida de Berna, em Lisboa, serviram durante muitos anos como local de expressão estudantil. Ali se pintavam reivindicações de cada momento, em conjunto entre muitas mãos. Era a arte a tornar-se vida. Invariavelmente, a direcção da faculdade voltava a pintar os muros de branco. Mas, recentemente, aconteceu algo bastante bizarro e inteligente. Pintou-se o muro, de forma institucional e para celebrar o 25 de abril, enchendo-o de cravos vermelhos. Que bonito, não é? Haverá até quem aplauda, por ver a arte como uma decoração e não como um horizonte de vida. Pois bem, agora já ninguém pinta nada lá, não há nenhuma reivindicação, não há vida ali.


Usemos a arte, como arte-combate. Usemos a arte para viver outra vida, para que ela se transforme nas nossas vidas.

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A. Duarte